TABLAO

3/6/20255 min read

Ali está o palco, à esquerda, ao virar da esquina. O cortinado entreaberto anuncia o que está prestes a acontecer. Lua Aires ainda arranja um sapato que se descalçou, distendida, a coxa direita parece combinar com a cortina, que abana levemente. Mas o pé já está em posição de ataque.

Entra no palco. O público, de pé, aplaude. O fervor cresce. A sala apinhada, a atmosfera cálida de promessa. Sente-se um ardor difuso. Detém-se em instantes. Concentra-se.

Lua sente sempre um arrepio nesses instantes, sente-se tomada por forças muito além de si mesma. O flamenco envolve-lhe o corpo, cobre todos os poros da sua pele. Olhada pelo tempo até ao mais remoto, onde as vistas se perdem e não há uma palavra que o exprima dentro do silêncio. Recuando mais de mil anos, esse lugar encontra-se ali mesmo, a perder de vista, como um longo tablao.

Lá fora, no presente, o público em êxtase perante o frémito do corpo. A beleza que corta. Começam as guitarras e as palmas. A voz que entra:

“Rosa María, Rosa María.

Si tu me quisieras, qué feliz sería.”

São cinco minutos a perder de vista. O número termina entre aplausos, olés e bravos.

Lua Aires sente-se plena, mas interrompida. Há que voltar ao momento, ao lugar, ao sentimento, dançar, bailar, dançar. Até sobrevoar a própria morte, se for preciso.

Mas o aplauso é longo. Prolonga-se. O que tanto resulta, como parece combinado, quando uma oitava abaixo, ampliado pelo som microfone, as palmas a compás, e logo a seguir a guitarra, anuncia um novo plano. A plateia reconhece-o, são os acordes de Al Verte las Flores Lloran, imortalizado por Camarón de la Isla e Paco de Lucía. É um novo enxame de aplausos — agora mais curto.

As palmas a compás duram mais que o normal. Os músicos não se parecem importar muito com isso. O guitarrista olha o cantaor nos olhos e o cantaor olha o guitarrista. O palmero frui o seu número com perfeição virtuosa. Há telepatia. O corpo de Lua funde-se com a música, o corpo ressoando com o ritmo. Ninguém parece querer sair desse lugar. O público muito menos. O ritmo prolonga-se até um ponto absurdo, ninguém quer ser o primeiro a quebrar o feitiço. Tem se ser o cantaor a decidir.

Al verte las flores lloran

Cuando entras tu al jardin.,

Porque las flores quisieran

Toítas parecerse a tìiiiiiii

A vibração acentua-se, intensifica-se. Evocam-se danças passadas em redor de fogueiras. Noites de luar ao rio. Quinhentos anos depois, Juan Alfredo de los Aires jurou que se tivesse uma filha ela havia de se chamar Lua. Quase três décadas passadas, a voz, a guitarra, as palmas e a percussão do cajón flamenco dão ao nome uma espécie de faísca. Lua e flamenco. Faísca e fogo.

Da chama Lua se liberta. Pouco importa se vai de encontro à multidão. O homem que estava ao meu lado não quer acreditar que ela tenha estado sentada no seu colo. Mesmo que por instantes.

Quando se dá conta, já Lua dança no palco entre um cenário de estrelas e uma lua imensa como figurino.

Y el día que tú naciste

Nacieron toítas las flores

Y en la pila de bautismo

Cantaron los ruiseñores.

BRAVO! BRAVO! A sala ferve.

Mas a banda não deixa. Pela adrenalina 'un, dós, trés', entra La Tana y La Juana, de una sola vez.

Ay

Ay

Ay ay ay

Que con el tralili, tralili, trai

Que con el tralili, tran tran tran

Hijo mío de mi alma

Tú no te cases con esa mujer

Esa mujer no te quiere.

É o momento em que me distraio, vá-se lá saber porquê. Talvez tenha mesmo entrado num transe. Ou até mesmo alucinado.

— ¿Que pasa? ¡Despierta, hombre! — diz-me o companheiro sentado ao meu lado, o tal que teve Lua Aires ao colo.

O que eu faço? Bato palmas com os demais. Mas ainda o ouço outra vez, no seu sotaque malaguenho.

— ¿Estas alucinao o estas enamorao?

Um assistente entra no palco e dá a Lua Aires um pouco de água. Ela bebe, levanta os olhos e sorri para a plateia. É um sorriso gentil e luminoso. Sentimos um novo fôlego.

Vêm ecos de Camaron De La Isla.

Volando voy, volando vengo

Por el caminho yo me entretengo.

O guitarrista e o palmero mostram o jogo — são virtuosos, fruem, divertem-se. Entra a percussão do cajón. Aceleram-se as guitarras, Lua absorve as chamas do meio-dia. Dançaria um mês sem parar, se fosse preciso. Se não existissem os limites.

Desafortunadamente, nas horas mandam as regras. Não por ela, mas por quem manda no tempo.

Preferiríamos as musas. Ou o grande Apolo, deus da luz plasmando as formas. Iluminando até ao mais fundo da noite nas raízes debaixo da terra. De onde brotou, um dia, o flamenco.

Só que a matéria pesa, não (se) vive do ar. Os agentes dos artistas, as agendas dos espectáculos, as obrigações e os impostos. E eu, à falta de mais, decido-me a ir beber uma Cruz Campo ao bar do estabelecimento. Pensando que vou ver Lua Aires outra vez quando voltar a Sevilha. Ou quando for a Córdoba, a Granada, Cádiz, Málaga, Jerez de La Frontera. Ou até Madrid, onde sempre se encontram os melhores tablaos.

Sei que todos queriamos continuar. Lua Aires, os músicos e um a um, todo o público naquele espaço, comungando do mesmo ritual. No palco bem tentavam dominar o ímpeto para mais. Impunha-se na alma uma travagem brusca.

Foi então que se ouviu, clara, uma voz de fundo. Talvez tenha sido o manager.

— ¡Ni media noche, ni hóstias! Se acabó la fiesta.

Mas ainda há tempo para um poema de García Lorca. A última dose antes da partida. A caña pode esperar mais um pouco.

El veinticinco de junio
Le dijeron al amargo
Ya puede' cortar si quieres
Las adelfas de tu patio

Ya puedes cortar si quieres
Las adelfas de tu patio
Y el veinticinco de junio
Le dijeron al amargo

Lembro Lorca dizer que Espanha tem um tipo de beleza tão intensa, que por ela somos esmagados contra uma parede. Ou se calhar fui eu que o sonhei. O que pouco importa. Sabemos que não é uma beleza que sim, nos esmagará, mas no fim ainda choraremos por mais.

E a dança acaba. Tem de acabar.