Dois Martinis

Um conto

11/9/202512 min read

Pico da noite no auge do verão, a multidão apertada, nas ruas um clima de romaria, a atmosfera animada. E desconfortável. Conseguir um lugar para sentar era tão difícil quanto frustrante, dependendo mais da sorte do que do esforço. Mas lá estávamos. Procurando, procurando... e como procurávamos! Olhando pelas frestas, pelos cantinhos, percorrendo becos, muros, canteiros. Nada.

Muitos anos depois, assistindo à primeira temporada de True Detective, da HBO, posso imaginar o que nos aconteceu: a Detective’s Curse, a maldição do detetive. Aquele fenómeno que nos impede de enxergar o que está bem diante de nós, não ver e tentar e continuar a não ver, e tentar, tentar até desistirmos. Como dar com a falta de atenção causada pelo excesso de atenção? Só há uma maneira: pura falta de atenção.

Falo, enfim, de um lugar que não era bem uma taberna, nem exatamente um café, muito menos uma cervejaria. Estamos em Vila Nova de Milfontes, quase no ano 2000, bem próximo ao centro da vila, num desvio curto e perpendicular a um dos epicentros da multidão, bem de frente ao castelo. E ali, a uns trinta metros, o miradouro oferece uma das vistas mais impressionantes da nossa vida: a Foz do Rio Mira.

Dali, o mar, as praias, o farol, o encontro das águas. Correntes e marés em movimentos infinitos, formando remoinhos a criar formas sobre novas formas. Milhares de círculos concêntricos entrelaçando em espirais. Van Gogh intrigar-se-ia com isto.

Mas não é só a visão disto. Há também o som do mar ao fundo, como uma parede sonora para o sussurro do rio, uma chamada para a eternidade — para onde eu quero que enviem minhas cinzas quando eu for para outra parte. Porque ali o tempo é tão agora como duzentos anos atrás ou cem anos à frente, a própria retro causalidade se confunde. Não tanto como o antigo castelo, coitado, que antes abrigava nossos ancestrais dos piratas e agora é uma mera pousada.

Nada que importasse naquele momento em que não conseguíamos ver nada. Mas eis que, por mais improvável que se adivinhasse, conseguimos encontrar uma pequena brecha. Dessa brecha entrámos numa ruela. Daí dar com um cafézinho pequeninho, com duas mesinhas, desocupadas, livre para escolhermos entre a da esquerda ou a da direita, era da ordem do milagre. Quanta liberdade! Parecia um 25 de Abril. Tínhamos encontrado o antídoto para a opressão do espaço. Vindo como que do nada. Ou seja: fadado a acontecer.

Dessa vez o meu irmão ia comigo — o que não acontecia sempre, que ele também vive em seus mundos e seus enredos — nos caminhos coincidiam até ao sortilégio daquele lugar. Seria a primeira de muitas vezes pelos afora.

Às vezes íamos só nós dois. Podíamos contar sempre ali com o dono do tasco — um senhor que já devia estar na casa dos setenta anos — e a sua mãe — que, pelos meus cálculos, devia estar na faixa dos noventa. Aquele lugar era tão humilde e parco que as pessoas faziam tudo para evitar entrar ali. Estavam para se divertir, queriam ruído, extravagância, o que até inconscientemente funcionava como um magneto de repulsa. Só que as cargas não eram iguais, o que me faria pensar nalguma magia, nalgum feitiço de invisibilidade. Problema é que de magia ali só mesmo David Copperfield, já feitiço, isso eram lá coisas da idade média e das bruxas dos contos de fadas. E no entanto…

No entanto, ainda bem, aquele noite era tudo nosso, meu e do meu irmão.

Um lugar típico alentejano, cheio de luz. Com aquele teto lindo de canas característico da região, as paredes caiadas de branco. Tudo era bem limpo, arrumado, arejado. Puro. Nada que lembre essa ideia que normalmente temos das tabernas: escuras, a cheirar a vinho de pacote, a vibrar a alcoolismo, decrépito e decadente.

Já falei das duas mesas: uma do lado esquerdo, outra do lado direito, com um espaço no meio para dar passagem a quem entrasse ou fosse até o balcão. Fora isso, o lugar —que sequer tinha um nome — era o minimalismo absoluto, sem qualquer intenção de ser minimalista. Alberto Caeiro não o enjeitaria. Zen sem sequer saber o que é Zen. Mestre Suzuki que não enjeitou a força Zen da poesia de Caeiro encontraria ali um exemplo ainda mais puro. No que de mais genuíno bastava-se. Era o que era. E se eu perguntasse ao dono se achava o seu espaço minimalista, ele responderia: — Minimalismo? Nunca ouvi falar. Podia-me explicar, que eu sou curioso.

Aquele senhor era um ser-pensar sem o menor traço de auto-consciência. Era uma criatura que se bastava sendo. Fazia-me sentir que não havia mais nada a pedir. Era como se ouvisse no fundo, com toda a educação: desfrute da sua cerveja e cale-se. Se quiser conversar sou uma pessoa curiosa, se não quiser o silêncio é bom. Pode passar aqui o dia inteiro, pode não voltar nunca mais. Nós estamos aqui até deixarmos de estar.


Eu e meu irmão sempre nos sentávamos do lado esquerdo, na mesa que parecia estar ali sempre à nossa espera. Não que nos fosse reservada, mas era como se fosse nossa. Dois bons motivos explicavam isso: primeiro, porque alguém teria que chegar; depois, porque essa pessoa, se chegasse, precisaria chegar antes de nós. E como a maioria das vezes ninguém aparecia, antes ou depois, aquele silêncio sempre nos abraçava.

Um silêncio longo, delicioso, que se estendia. Nada era denso ali, tudo tinha a leveza do ar puro. A gente respirava, a mente arejava. Pedia-se uma cerveja Sagres, bebíamos directo do gargalo, líamos um jornal ou um livro. Isso, claro, quando o silêncio não se impunha em si como um prazer maior. Por vezes só tínhamos mesmo com vontade de o sentir, de mergulhar naquele vazio de onde do nada se geram tantas ideias e pensamentos. E de onde limpamos a cabeça. Descansamos a mente. Percebemos que o mundo afinal não é assim tão mau.

Mas quando sabia ainda melhor, era quando o mundo era bom e a vida ainda mais extraordinária. Ou seja, após um belo dia de praia. O que, ali contado pelos anos, dá um bom punhado de dezenas.

Num desses dias, para não variar, lá estava eu com um livro, um jornal, e uma cerveja a alegrar-me do calor. E fui surpreendido:

«Importa-se que eu o interrompa?», disse-me o senhor.
«Não me está nada interrompendo.», eu tinha tanto respeito ao senhor, que tentava sempre ser educado ao máximo.
«Estou a interromper sim. Está aí tão compenetrado...»
«Olhe nem tanto...»
«Não lhe quero tirar o prazer da leitura.»
«Não tira nada.»
«É que, sem querer, o senhor mostrou-me o livro, e eu estava olhando, e...»
«Conhece o Leão, o Africano

O senhor pareceu não ouvir. Não vos disse que ele era um pouco surdo, mas era. Às vezes era preciso repetir:
«Conhece Leão, o Africano
«As Cruzadas Vistas pelos Árabes, conhece?», foi a sua resposta.
«Sim. Esse tenho em casa, mas ainda não li. Li outro: Os Jardins de Luz, conhece?»
«Esse não conheço.»
«O que já leu do Amin Maalouf?»
«As Cruzadas Vistas pelos Árabes, esse li. Gostei muito. Muito interessante. Muito bom.»
«Olhe. Está me dando uma boa recomendação.»
«Pois é. Excelente livro. Gostei sim. Gostei muito.»

Num instante, começou a falar do livro, das cruzadas, das guerras, do Médio Oriente, do mundo de hoje, do mundo de ontem. Uma empreitada temerária e arriscada para quem claramente percebia pouco ou nada do assunto. O senhor enganava-se, enganava-se muito errava. Lá se iam as minhas teorias de pureza Zen.

Era vê-lo a tentar e a repetir. A tropeçar e a ser incongruente. Nada que ver, no entanto, com as inanidades de extrema-direita que temos o desprazer de ouvir hoje. Não, a sua ignorância era limpa pela pureza da sua alma. Tudo o que dizia tinha o coração no lugar certo, inteligência e boas intenções.

Sobre o que exatamente o homem dizia, minha memória falha — e falha muito — como um fraco televisor que perde o sinal. Minha antena, coitada, distraída por tanto disparate, entrou, como muitas vezes acontece, em piloto automático. Pensamentos vagos tiravam-me dali, desviavam-me do discurso do senhor, minha mente viajava por não sei onde com as suas distracções.

Mesmo assim, nunca me tarda o momento em que a lógica prática me lança o alerta: desculpa-te e sai daqui para fora.

Mais eis que de súbito algo aconteceu. Um sinal. Algum sensor na minha antena captou qualquer coisa. Era preciso prestar atenção.

«Não ouvi bem. Pode repetir, por favor?»
«O Amin Maalouf é o melhor escritor do mundo. Estive a conversar com um senhor que entende dessas coisas. E o senhor garantiu-me: o Amin Maalouf é o melhor escritor do mundo.»
«Olhe que… sabe, isso depende… Não dá para julgar muito bem essas coisas assim dessa maneira… É um assunto muito complexo, senhor, nisto é tudo muito relativo. Temos de falar disso com mais tempo. É uma conversa longa.»

Eu voltaria à noite, dessa vez acompanhado pelo meu irmão.

Cada um de nós, sua própria viagem — seja lá o que isso signifique. Existe uma espécie de telepatia entre irmãos, uma cumplicidade construida desde a mais funda infância, quando ainda nem sabíamos o que era a letra A. No que a linguagem traz já outras ginásticas, onde o silêncio até sabe falar mais que a conversa mais bem elaborada. E naquela noite, o silêncio imperava. Um silêncio partilhado também pelo senhor da taberna e a sua mãe, apenas interrompido por mandatos simples como “Uma Sagres, por favor”, “duas Sagres, por favor”, e nada mais. A coisa por aí deve ter durado quase duas horas. Quem nos visse de fora pensaria que Aki Kaurismaki tinha adaptado uma cena a uma longa metragem. Nós, nem por isso.

Até que chegaram duas espanholas. Traziam calções e roupas que posso descrever não tanto como de acampamento, como de estavam a acampar. Quebrava-se ali um clima — não que fosse mau, nada disso, até era bom, mas enfim, quebrava-se uma espécie de inocente feitiço. E de que maneira: trazia a electricidade de Espanha.

Eram boas vibrações. Naqueles anos havia ali pouco turismo. Milfontes era pouco conhecida, e se havia alemães e holandeses, por incrível que pareça, encontrar ali um espanhol era uma raridade. E quem vinha, se vinha, trazia consigo o entusiasmo da exploração de novos lugares, de conversar, de aprender, de descobrir. Elas nem pensaram em se sentar na mesa à nossa frente. Não. Primeiro, queriam falar com o comandante.

«Buenas noches, señor!»

«Buenias nioties. Lo quiéque desiejian?»

«Dos cervezas, por favor.»

Eu e meu irmão, conectados como dois imanes, viramos o rosto um para o outro. Meu irmão saca um daqueles seus risos abertos e mudos que só de si fazem com que nos desatemos a rir. Mas aguentei. Ele melhor. Conseguimos sorrir sem rir. Depois já não — com todo o cuidado em não sermos notados.

Era o respeito que nos impunha. Mas segurar a risada não era fácil. O facto de elas serem espanholas entusiasmadas, o que amiúde se traduz em falar bem alto e se atropelando, por vezes as duas ao mesmo tempo…

Eram tão parecidas que, na minha memória, uma é apenas o reflexo da outra. Não vejo duas, vejo uma. Como diria Borges: a mesma, a outra, a outra, a mesma.

«Usted conoce bien este lugar?»

«Conhiecio muy bienie.»«Puede darnos algunos consejos?»

«Les puedo darlies muitios consielhios. La vistia piertio del castelio, la playa del outro ladio del rioiu. Uno passeio por el rioiu es muy lindio. Vale muitio la pienia. Las playas, do Malhão por ejemplio, las casquiatias, el Moinhio de la Asniéria. Muchia ciosia, muitiás coisias!»

Elas estavam esperando histórias e experiências? Pois bem, encontraram uma boa história e uma ainda melhor experiência. Tanto que já não queriam perguntar nada. Apenas ouvir a voz do cantor. E o cantor, por sua vez, talvez preferisse entoar a desgarrada.

«Vociês viénien di ondiê?»

«Venimos de Madrid.»

«De Madrid! Muy bonitia, Madrid...»

«Conoce Madrid?»

«No. Solo las fiótios, todas muy líndias, muchos monumentios, mucha artie. Muchas História. De los conquistadiories y delo impiério espanhuélio. Todio un grandie impiério. E despuesié hay las touriadias que puedien ser muy bielias mas que yo no apriecio muchio: muy violentias para mi las touriadias, ui, ui!»

«Si. No nos gustan los toros. ¡Pero nos encanta Madrid!»

«Pues, pues...Madrid encantia...Muy lindia Madrid. Muy lindia. Si, si. Me gustaria mesmio muchio conoceriê a Madrid.»

«Esto aquí también es precioso. Muy precioso. ¡Qué tierra más maravillosa es esta, Milfontes!»

«Si. Vilia Niovia de Milifionties es muy preciósia, si muy hermiósia.»

Era precisa muita auto-disciplina para não explodirmos. Enfim. Nessa altura ainda aguentavamos.

«El señor ha hablado del passeio en el rio, verdad?»

«Si. Verdiadié.» «Donde se compra las tarjetas para el barco?»

«Tarjietias? Tarjietias?», estava confundido. Não estava à espera dessa das tarjietias.

«Bilhetes» – disse eu em voz forte.

«Ha! Tarjetias, pues, tarjetias. Tarjetias es ali abiaixio, subien esta ruia en frientie, despues virian a la esquierdia y despues descien siempre las esciadas y encuentrian la billeteria; mas las tarjietias solo amanhãnia, a partirie de las nuevie...»

Ao melhor escritor do mundo seguia-se o melhor portunhol do mundo. Ainda assim preferia o silêncio. Entre a maravilhosa casa com quinta, herdada do nosso avô, onde viviamos e a divina Praia das Furnas e o Miradouro, aquele já era um ponto ali tão obrigatório como respirar. Ia fazendo a minha parte. Depois da praia, ao fim da tarde, feliz como uma perdiz.

E depois de noite, com o meu irmão. Noites iguais umas às outras. Noites em que não acontecia nada. Noites que também não trocávamos por nada. Com raras variações, como esta do meu irmão:

«Nunca reparaste nas garrafas de Martini?»

«O que têm as garrafas de Martini?»

«Não me digas que nunca reparaste naquelas três garrafas de Martini!»

«Não. Nunca reparei naquelas três garrafas de Martini. O que têm as três garrafas de Martini?»

«Repara bem.»

Eu reparei bem. Fiz um esforço. Nada.

«Estão sempre vazias. Nunca foram usadas.»

«Como é que sabes.»

«Eu? Como é que eu sei? Eu reparo nas coisas, mano. Tu é que nunca as vês.»

«Já andas a reparar à muito tempo.»

«Tenho-as as fisgadas desde o primeiro dia.»

Apeteceu-me dizer, um pouco por ironia, mandando a boca, algo como "já sabemos que és muito intuitivo. Mas a verdade é que é, é mesmo muito intuitivo. Então calei-me, deixei-o tomar a dianteira.

«Estão sempre lá. Sempre cheias. Nunca serviram um copo na vida.»

«Mas podem ser outras, não?», disse eu, um pouco idiota.

«Devem ser, devem... Trocadas todos os dias, sim, sim.»

«Hmmm...»

«Não acreditas?»

«Hmmm...»

«Dois Martinis, por favor.», pediu o meu irmão.

Como o senhor ouve mal, ele levantou-se e eu também, com o instinto de afinal ver para crer.

Fez-se silêncio. Silencio, mas não o mesmo silêncio, se é que me explico. O silêncio era grave. Estranho. Até um pouco hostil. Cum raio. Coisa tão esquisita! Porquê? A resposta era mais silêncio. Não havia resposta.

O senhor nosso amigo já não nos parecia o mesmo senhor, nem nosso amigo. Olhava-nos como se o tivéssemos atingido em algum ponto vulnerável, como se nos tivéssemos perfilado como adversários.

«Martini não é para vender» disse ele, num tom grave de declaração.

Olhámos um para o outro, engolimos em seco. O meu irmão olhava-me no fundo do olho, eu sentia. Bem conhecia aquele olhar triunfante. Já vinha dos jogos de cartas, quando o que mais ele tinha eram manilhas de trunfo, ases, ases de trunfo...

«Como não há? Desculpe, senhor, estou aqui a ver à minha frente», disse eu.

Outro silêncio. Agora, no entanto, mais triunfante para o senhor nosso amigo e um tanto ou quanto desconfortável para mim.

O meu irmão, esse, era ali o mais triunfante de todos. Claro que ele não queria beber Martini nenhum. Só queria fazer valer um palpite como uma vitória. Na certa que trazia o baile dos dois lados.

«Essas garrafas não são para consumo.», rematou o senhor, definitivo.

Estávamos parvos, parvos de todo. Então engolimos em seco, a bem de todos. Com um ligeiro incómodo. O suficiente para o nosso amigo notar. Ao que disse humildemente, voltando a ser o senhor genuíno, simples e bondoso que conhecíamos.

«Não é para vos incomodar, percebem? É que não sirvo Martinis. Aquelas garrafas são só para enfeitar o mostruário. É só mesmo para enfeitar, compreendem? São só para o mostruário. Não me levem a mal.»

Claro que não compreendemos. Claro que não levamos a mal. Sentámo-nos. Bebemos as Sagres que nos competiam. Conversámos, conversámos mais do que o costume, contámos piadas, entrámos numa de gozo e de riso.

O mostruário tinha-nos conseguido pôr ainda mais bem-dispostos. Pedimos mais duas, conversámos mais, depois pedimos mais, e mais, e mais... Entrámos num autêntico mar de galhofa. Essa noite nunca parámos de galhofar.

Até que vieram as mesmas duas espanholas, animadas, muito animadas.

«Dos Martinis, por favor.»

E com isto acabo. Não escrevo mais nada. Não adianta, já conhecem o jogo de costura, as linhas, os tecidos... Deixo à vossa imaginação. Se ficarem no vosso corpo as saudades que tenho daquele espaço, daquele tempo e daquela gente, com um duche frio isso passa. Ou costuma passar.