Descobri isto com Bolaño


2011 — Descobri isto com Bolaño: escrever com música aos altos berros. Longe da voz, mas perto do batimento cardíaco.
1994 — Não se sabe bem onde, nem quando, nem a que dimensão de existência podia ter trabalhado aquele caderno. Estava ali tudo: juventude, explosão, imaturidade, fogo. Mas também ignorância, falta de travões, de propósito, de inteligência. Coisas que o tempo pulverizou. Não resta nada e todas as casas eram alugadas.
2003 — Ninguém me acredita: mal o mestre deu um grito logo tombaram uns dez, uns atrás dos outros, quais peças de dominó. Eu estava lá no dojo. O grito nem sequer foi alto, foi um dardo sonoro baixinho, surdo, denso, algo entre o aéreo e o coração da terra. Contei ao bairro inteiro e ninguém me acreditou, riram-se, desconfiados — é um problema lisboeta, achar que alguém tem sempre alguma na manga. Então expliquei-lhes o que era um kiai. Riram-se ainda mais.
1999 — Então botas calçadas lá vou eu. Passo os montículos de terra sobre o penhasco da rocha, o mar abaixo mesclado em névoa, três barcos a vinte metros a trazerem peixe acabado de pescar. É Porto Côvo, dia de nevoeiro. Um pescador amigo a perguntar se não queria comer um peixinho, e falava a sério, este aqui é o meu pai, muito prazer, insistia que eu me sentasse naquela improvisada esplanada de uma mesinha para dois, mesmo à porta da rua e as pessoas a terem de se desviar para onde passam os carros. Muito obrigado, tem óptimo aspecto, mas eu já almocei. Mentira, não tinha almoçado coisa nenhuma e tinha muita fome. Mas queria estar sozinho. Precisava. Outra mentira é que tinha toda a gente à minha espera. Não havia ninguém.
2021 — Vá-lá que me belisquei quando vi o papel de que eram feitos certos tigres. E contra isso, malta, o tempo que existe é pouco ou quase nada.
2037 — Salvei-me a mim próprio ou salvei-me de mim próprio? O tempo do salvamento não é, no entanto, o momento em que nos deixamos de engasgar. Tive bem isso em conta depois, já em 2045. Entretanto, já passaram vinte anos.
