A Farmácia
Um conto


É a minha farmácia. Prefiro pensar que é a minha farmácia, como aquela é a minha tabacaria, ou que vou sempre ao mesmo café tomar o meu café, aquele é o meu supermercado e aquele o meu ginásio. Sou homem de lealdades quanto mais não seja por dever moral. Não sei se deva confundir tal com comodismo no sentido em que qualquer falha dá-me logo comichões na consciência — na melhor das hipóteses — ou um agudo sentido de falha, na pior, pagos em noites mal dormidas.
Desde que a competência e a civilidade sejam mínimas, está tudo bem seguirei pelo mesmo barco. Há essa frase comum na gíria futebolística de que equipa que se ganha não se mexe. Aplico-a bem aqui, sendo que para mim nisto vitória é basicamente que não me chateiem. Se bem tratarem bem, melhor ainda, é sinal que ganhei de goleada.
De resto, tem de haver mesmo muita incompetência, displicência, incúria, arrogância, para me fazerem trocar de posto — o que aconteceu há uns anos quando o António mudou a marca da cerveja à pressão do café Roma, perdendo um fã daquelas imperiais.
Ou a papelaria que me deixou de ter ao sábado o suplemento cultural do ABC com a desculpa de que não enviam. As desculpas, então, são o pior que me podem fazer. Não sou de pedir muito, agora as desculpas. E se eu dissesse ao homem que não gosto do ABC, que tenho até vergonha de comprar, que é de uma violência ideológica e de uma parcialidade assustadoras? Subvalorizar os meus gostos e valores, até mesmo as idiossincrasias, quando sou eu que as pago? Dez euros por mês de ABC são 120€ ao ano. Já os compro pelo menos há cinco anos e ainda não voltei a Itália…
O que me rebelaria a escrever isto? Bom, ainda não estou realmente a escrever. Escrever umas notas mais ou menos desenvolvidas é só e apenas isso: escrever umas notas mais ou menos desenvolvidas. Mesmo assim, o leitor que aqui chegar não saberá se a mesma vem da nota ou do acrescento. Tal como não saberá o que eu cortei só para fazer ressaltar o que lá está… Sim, uma máquina de cortar, facilita a vida, como diria José Cardoso Pires, ficaria tudo mais fácil, até mesmo para esta farmácia.
A Dra. Fernanda Almada pode até dar o nome a esta farmácia — Farmácia Almada — mas anda ali aos papéis com uma velhota e três papelinhos de receitas. Não tem mais nada que fazer e quer conversa, fala pelos cotovelos, está-se a marimbar para a fila que cresce atrás dela como soufflé na panela. Como se vê, tivemos pouca sorte, mas não me vou daqui, vou ter de roer o osso até ao fim. Por um lado, não quero ser mal-educado, por outro, acho que me devo castigar um bocadinho. Deixo a boa educação à lealdade, o castigo, ao comodismo. Ou se quiserem: ponho de castigo o meu comodismo. Não me mentir tanto, pelo menos desta vez, saber muito bem que só venho a esta farmácia por ser mandrião, a outra está só daqui a uns duzentos metros. Mas não. Até já tenho gente que me pergunta: mas tu ainda vais a essa farmácia. Porquê? Porque a farmacêutica dá trela a estas senhoras. Tem o horário a cumprir e prefere lentamente e em mui lenta cavaqueira, ouvindo as queixas, alimentando os suspiros, as lamúrias, os tédios partilhados, coitados.
De facto, desde a primeira vez que vim que isto tem piorado, regredido, atrasado. Os clientes vão se embora, pouco importa. É mais um alimento para as lamurias — essa espécie invisível peganhenta que cola. Até eu agora a queixar-me as alimento. Eu e esta lamurienta matraca falante à minha frente, que só é capaz de desamparar esta loja quando for de férias com o INATEL.
Comparar esta com aquela farmácia em Serpa onde vive a minha mãe… Como não comparar? A de Serpa é enorme, de um absurdo tamanho para uma farmácia, com aquele chão e candeeiros, parece mais o Café Majestic, no Porto. E o atendimento eficiente, amabilíssimo, rápido, tudo ali deveras apreciável, até à frescura do ar condicionado.
A gente da terra conhece bem o proprietário, que não está lá sempre, tem outra farmácia na Amadora. Pela forma como o descrevem teremos ali, como se diz em Espanha, um homem de curro, de trabalho de sol a sol, um viciado no trabalho. Também dizem que tem um pai muito rico, que a família tem propriedades e terrenos. Serpa, Amadora, na primeira um palacete-farmácia, na segunda uma eficiente farmácia suburbana. Há quem diga que a próxima será em Lisboa, ali para Santa Marta. Se for perto de onde suspeito, pulverizará a concorrência.
Certa vez em Bordéus reparei num outro dono de farmácia assim ao nível da Champions League. Notava-se. Andava ali. Paralelo à fila da farmácia — e pouco lhe importava se dava ou não nas vistas — a criatura, nos seus quarentas, de barba rala e corpo atlético, fazia um vídeo olhando directamente para o seu telemóvel. A farmácia tornava-se um estúdio de reportagem; um centro da emissão em directo; o núcleo de um grande acontecimento. A farmácia era o grande acontecimento.
E o que era realmente tão importante em tudo aquilo? Ora, que pergunta tão parva: a farmácia é o realmente importante. A farmácia é realmente o acontecimento. O mundo inteiro tem de estar radiante e extasiado pela força in loco daquele preciso momento. Que mais? Que mais? Ora, vem aí uma conferência de farmacêuticos, ali mesmo, naquele lugar, naquele mesmo espaço onde se encontrava e uma massa de uns dez clientes se dispunham em fila. Naquele espaço, como quem diz, naquele bairro, num hotel que já está cheio e reservado propositadamente.
A força do propósito, o peso do acontecimento, aquela realidade paralela impunha-se de tal forma, que às tantas ouvimos do próprio um rematado, confiante e humorado: não é para os Oscares, não se preocupem, é para o Instagram da farmácia.
Tanto achei piada à coisa que comecei a segui-lo no Instagram. Sou um dos seus sete mil seguidores. Ele é vídeo-anúncio-novidade, como já vimos, na sua farmácia. Ele é ele a surfar em Biarritz. Ele é ele a escalar nos Pirenéus. A pedalar no campo. A jogar ténis. Ele é ele a levar os dois filhos a jogar futebol nas camadas jovens do Girondins de Bordeaux. Cálculo que seja feliz. Se não o é, pelo menos diverte-se bastante. Ou pelo menos tenta. Faz alguma coisa. Não se aborrece nem nos aborrece como a Dra Fernanda. E como eu mesmo, já agora.
Mesmo assim, como a vida nos ensina, é sempre possível ser pior. É sempre possível descer mais baixo. Quando vivia em Cascais, numa zona alta da cidade, a pé a vinte minutos do centro, em muitas ocasiões a única farmácia disponível, enfim, era a única farmácia disponível. Ia lá mais se me constipava, ou se me atacava uma dor de garganta, ou mesmo uma valente dor de dentes, situações em que não recordamos bem da receita, nem de quem nos atende.
Mas como não me lembra daquele farmacêutico antipático e mal-encarado. Ar de quem matava alguém. Aquele rosto do demo de Nuno Homem de Sá1 . Frieza sádica, olhos nos olhos. Neurastenia na respiração. Voz ríspida no trato com os subordinados. Para os clientes conseguia ser mais simpático — e mesmo assim, bastante antipático. Não estava a ver quem o aguentasse. É dessa espécie de criaturas que pulveriza tudo à volta. Ser heroico ali é apenas e só cavar dali para fora. Como diria Miguel Torga nos seus diários, cito de memória:
"Não é um ser humano, é um cabo eléctrico em que mal tocamos apanhamos um choque."
Há criaturas tão tóxicas e nocivas para a saúde que muitos acabamos por ter de ir parar a uma farmácia. Comparado, este tédio de espera é o paraíso, a beatitude terrena. Humaniza tudo, humaniza a vida.
Afinal de contas aquela senhora tão chatinha já está a pagar a conta. Agora é ver se não fala muito enquanto recua para dar meia volta e adeus vai-te embora. Mesmo assim, vou contar. Saberemos no parágrafo seguinte:
Quinze minutos a queixar-se das maleitas próprias comparadas às alheias. Do filho que já não vê porque vive em Londres. Mesmo assim nunca telefona. Muito Deus Nosso Senhor. Faz sentido. A farmácia é e deve ser um lugar de misericórdia. Se tirarmos os estratosféricos das farmacêuticas, as conspirações óbvias do Big Money... Não falemos no Vaticano, gosto deste Papa. Ainda gostava mais do anterior. Vamos embora. Levo daqui o anti-inflamatório, o paracetamol e os remédios para a tensão.
